sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Vida ao Vivo


O que era para ser uma noite tranqüila, e corriqueira tornou-se algo estranho e indefensável. Foi assim que começou minha terça-feira, um feriado sem nexo, cessado no tempo para que as pessoas caminhem lado a lado com o tédio e o medo. Os ponteiros do relógio mudo mostram seis da tarde, e os sinos da catedral não ousam se mover. Tudo está adormecido, feito o crepúsculo enfadonho.

Nesse dia, o vento taciturno, levava a narcose para os corpos pálidos. Ao caminhar no meio das estatuetas da Praça Cívica, acendo um cigarro e espero o efeito acontecer. Meus brandos passos fazem com que me perco pelas vielas de um maldito atalho, e o silêncio esconde o abismo sobre meus pés.

Meu desleal copo já se encontra vazio. Procuro nos cantos e becos, um boteco, que faça preencher a lacuna da minha obsessão por um velho barreiro. Meus olhos pardacentos nada enxergam. A solução, é continuar com o cigarro sempre impetuoso, ao menos, tenho que contentar-me com essa deplorável nicotina. Os esbranquiçados de meus olhos fogem, e dão lugar à vermelhidão da arrogante insônia, resultado de extrapoladas noites voluptuosas.

Meu fascínio por dias comuns levou-me ao transtorno do excêntrico. A cidade encontra-se inabitada pelos sonhos, e a única coisa perceptível são as pessoas paralisadas à espera dos holofotes, e das câmeras serem ligadas para a gravação da vida ao vivo. O repugnante reality show dá o ar da graça na miserável televisão brasileira. O inevitável se rebelou e partiu ao meu encontro, para fazer da minha lúgubre vida um palco com milhões de espectadores, todos alienados pela inusitada estória de um lírico poeta em tempos contemporâneos.

Aflora no meu peito uma demasiada ânsia, ao ver-me cercado pela imbecilidade de seres espúrios, que riem e choram mediante ao patético roteiro em branco. Não consigo entender esse deturpado interesse por transmitir minhas idéias, minhas intimas poesias, meus vícios, e meus atributos a todos os habitantes desse humilde país de bastardos.

A insensatez tramita nos acontecimentos, e já não consigo sobreviver sabendo que sou o intérprete protagonista dessa peça, onde o que prevalece é a futilidade, e a desmoralização da imagem alheia. Meu desejo era de isolar-me no conspurcado mundo, como eu fazia todos os decorrentes dias pavorosos daquela vida ultrapassada, pois agora, o único episódio que subverteu era as cenas gritantes do meu quotidiano que perambulavam na TV execrável.

Cansado por viver solenemente, me afugentei nas ruas despidas para vangloriar o nascimento das borboletas, e o acordarem das magnólias, mas repentinamente meus olhos avistam uma imagem perfeita, uma bela Alice, que estava atordoada por me ver caminhando em estradas errôneas, por ver milhões de anônimos palpitando no meu destino, escolhendo minha trilha sonora e meus exorbitantes cenários prosaicos. Assim, em dúbias palavras ela descreveu minuciosamente minha vida ao vivo, e junto aos seus clandestinos pensamentos, resolve juntar-se a mim nessas vastidões de espinhos e cravos.

Sentados nos desgastados bancos da Praça Universitária, enrolamos uma cigarrilha e dividimos meio copo de um velho whisky, e juntos mediamos às escrituras do meu inacabado diário, promovendo nuas cadeias de promessas, interrompendo o tempo e o compassivo vento. As horas passam como um relampejo, e quando nos damos conta, os ponteiros estão assimetricamente no mesmo espaço, marcando meia noite de deslumbramentos. Adormecemos ali mesmo, encolhidos num banco de cimento em meio ao frio perspicaz e duradouro. Num breve instante, surgem os primeiros raios solares em meio aos prédios imperialistas.

Alice despertou com o rosto todo amarrotado, e o cabelo emaranhado por destreza, porém, nem por isso, deixou um momento sequer de ser linda e afetuosa. Por um conciso momento nossa barriga dá o alarme do meio dia, estávamos totalmente esfomeados, e o melhor a se fazer era procurar um restaurante mais próximo possível. Depois da plausível digestão, continuamos desnorteados pelas ruas centrais, tentando sempre fugir dos malditos câmeras que sempre registravam nossos frenéticos passos. Após longas horas debaixo de um sol febril, as lembranças tornam-se imagens vagas, tudo fica difuso quando tento lembrar os grandes momentos de êxtase. O prazer se esvai da memória, e a penosa realidade dá lugar ao receio da perda. Afinal de contas, esse desprezível reality show trouxe um raio de luz para minha tenebrosa vida, no entanto, o destino sempre teima em exalar minha felicidade, e a insegurança me persegue pelos estreitos nebulosos. O provável era desvirtuar essa sádica condição, e fazer do sentimento uma razão para se perder no abismo, que é viver.

Encontrei-me com o semblante amargo, e o marear dos olhos é inundados por lágrimas e sal, dando plantão nos problemas, e nas malditas idéias fixas. Minhas expressões condenavam-me, e era notório meu ar de cepticismo. Alice logo percebeu que eu estava moribundo, e conduziram suas generosas palavras, cantarolando em meu ouvido: “Não importa o que acontecer. Eu vou estar sempre com você.” Em seguida, seu fraterno abraço me cingiu para perto de seu ardente corpo, afagando meus vistosos lábios com seus dedos medianos, que percorriam toda minha face pálida. O beijo enleia nossos lábios sobre a luz da vigora lua, e ao som de um mavioso violino, que nos embalava em eternas carícias. O tempo gracejou com as estrelas que estavam todas no chão em formato de poesia, e o brilho ofuscante refletia no sorriso irradiante de Alice, desfiando sublimes cenas inolvidáveis.

Esse momento tão especial foi visto e revisto por milhões de fulanos incrédulos, todos vidrados nas lentas cenas de um beijo, que despertavam a inveja, e desejos proibidos em seus pensamentos insanos. O bizarro disso tudo, era ver nossos semblantes juntos nas vitrines, acompanhar o desenrolar de um enredo ao qual eu não gostaria de pertencer, pois a diplomacia da nossa imagem era fumegante e voraz.

Sentados sobre as nuvens do fulgente céu, Alice fez-me prometer guardar seu sorriso no dúbio labirinto, para que ele não se esvai da sua delicada face, e que suas virtudes não caíam em areia movediça, equiparando-se o entardecer de um contraditório olhar sereno. Por dentro da fantasmagórica torrente, percebo a alienação dos meus pensamentos indo a encontro de uma mulher diáfana, que permeia minhas ideologias no quotidiano esquizofrênico, levando-me ao delírio da banalidade surreal.

Será que tudo isso é uma ilusão? Talvez, criação do meu execrado subconsciente? As perguntas ficam à espera por respostas convincentes, todavia, as palavras cessam no tardio inverno taciturno.

Os pensamentos deixam vestígios na minha serena face, e junto aos meus cravados passos, surgem pegadas de perseguição que retarda minha lúgubre existência.

O gosto atroz do cigarro amargura minha essência, como se minha descendência vivesse a espera do pincelar de palavras, para que suas rotinas sejam vigoradas num singelo farrapo de sonhos. Adiante, desperto do meu profundo delírio, e percebo-me conjeturado na cultura de drogas efêmeras, que torna minha vida igualitária a um ditador de devaneios.

A cultura da aparência descartável ofusca nos meus olhos enfastiados, e percebo-me envolvido nos dias quotidianos de uma sociedade desprovida de sentimentalismo. Logo, intuo que minha decepção seria desvendar a veracidade da previsão dos meus devaneios. Meus delírios previram que meus passos seriam abandonados, e que o abraço seria desentrelaçado, mas, não importei com aquelas imagens ludibriadas, e caí em meio ao alvoroçado apego da paixão avassalante.

“Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio.” Enfim, desordenei minha obsessão pelo perfeccionismo, acorrentei minha consciência, para que ela não me julgue nas noites de insônia, e para que os lençóis jazam no amarrotar de dois corpos atrelados no acaso.

O vento lastimoso induz as pétalas das magnólias, conduzindo também Alice para as vastidões de inverossimilhança junto com as flores de um deserto vermelho.

Meu cômico destino é um velho ranzinza, que anda ao meu lado apoiado em uma bengala, curvado pelas fortes dores na sua desgastada coluna vertebral, de tanto me perseguir pelos meus estreitos nebulosos juntamente com Alice. Os dois tramam meus próximos passos, e escolhem também os novos personagens que iram fazer parte do meu dúbio quotidiano. Os olhos doces de Alice cederam lugar ao temível desagravo, e junto com meu infeliz destino escreveram entre linhas tortas meu súbito final irrestrito.

Naquele derradeiro dia da minha vida, lembro vagamente a expressão de felicidade de papel cumprido da Alice. Finalmente ela tinha desempenhado o acordo feito por uma cúpula, que fora criado simplesmente para a retaliação das minhas ideologias e de meus farrapos sonhos.

As imagens na TV mostravam somente um fato consumado, o da minha derrota. Tudo caminhou de acordo ao roteiro, inclusive Alice, uma mera personagem enfastiada nesse desgraçado reality show. Onde tudo fazia parte de uma mesquinha novelinha das oito, misturada com ingredientes reais, neste caso, o prato principal a ser devorado era eu. Fui escolhido em meio à multidão para ter a vida retratada num canal de TV aberta. Simplesmente servi de descontração em meio à monotonia que é a vida dos amargurados brasileiros.

Meu fim estava próximo. Tudo foi minuciosamente esquematizado para denegrir meu desconhecido nome, e para tripudiar minha ingenuidade. Quando me dei conta dos acontecimentos, percebi que tudo que tinha vivido não passava de uma utopia.

A desordem caminhou de mãos dadas com a morte em minha direção, prontas para dar o súbito aviso de término de uma sublime vida. Minhas trêmulas pernas não agüentaram o peso do meu debilitado corpo, e caí ajoelhado de frente para Alice, pronto para receber a verdade maléfica. Nesse dia, o crepúsculo não ousou por seus raios infindos no céu, e as estrelas fizeram questão de enegrecer a constelação, tudo isso foi à manifestação em reposta a retaliação do meu destino. As magnólias tornaram mandrágoras extremamente venenosas. O ar estava denso, e minha respiração tornou-se algo rarefeito e nefasto.

Naquele instante, subia uma vontade enlouquecedora de acender um cigarro, e de empurrar goela a baixo um velho barreiro, livrando minha garganta do nó que se formava, e para anestesiar meu corpo daquela circunstância hostil e desrespeitosa. Mas, o provável era tornar-me anônimo, e viver solenemente numa cabana no alto de uma montanha imêmore. Com isso, peguei meus atributos, e lancei-me nas costas. Segui desnorteado sem deixar olhares para trás, e sem deixar pegadas.

Ligeiramente os anos passaram, e tornaram-se décadas de inquietação. Meu semblante logo se tornou um arranjo de velhice ingrata, e o sereno coração teima em bater num corpo senil. No entanto, lamentavelmente continuo cercado pela amargura das lembranças, de ter em meus braços um amor que por instantes parecia ser verdadeiro. Bem dito, parecia.

No decorrer dos anos, as pessoas perceberam que minha vida esquizofrênica tinha perdido o sentido, e já não enaltecia minha imagem, onde o próximo passo era a odiosidade em cadeia nacional. Se ao menos eu pudesse flagelar meu conturbado passado, assim, escreveria sublimes poesias no límpido céu de devaneios, e, contudo, teria um derradeiro capítulo que poderia ser escrito por mim.

Engano meu, as palavras não queriam sentar-se naquele papel sujo e amassado. Portanto, tinha que contentar-me com a realidade, e afogar de vez em um copo de cólera.

Termino essa história, como quem termina uma vida. Pois no antro da morte, o que me resta é a companhia inseparável das palavras. Assim sendo, entre as murchas rosas e cravos, morrerei sorrindo à espera do recitar das minhas ínfimas poesias em uma boca lívida.

Pablo Silva

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Além da vida

Teu pálido semblante
Habita nos meus
Pensamentos levianos,
E leva-me pelos ares
Da madrugada fria.

Vôo nas nuvens
Que pairam
As magnólias murchas.
A procura dos teus
Vistosos lábios
Nas encostas
Da imensidão do abismo.

Perco-me na melancolia enclausurada,
E não vejo teu rosto tão de perto...

Esse teu sorriso espalhafatoso,
Transcede minha alma,
E me resgata das profundezas
Do tédio,
Desacorrentando-me
Da morte taciturna.

Nascendo em tua boca lívida
Meus versos formosos.
Almejando a vida
De dois corpos emaranhados
Pelos espinhos
Das rosas azuis-turquesas.

Pablo Silva