sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Biografia de um poeta de araque

Meu ferrenho dia começa as quatro da alvorada. Levanto nocauteado pelo sono, e com os olhos grudados pela sensibilidade da frenética luz contemporânea. Após lavar o rosto, começo higienizar meus dentes amarelados pelo gosto presente do cigarro. Em diante, lanço aos passos nas ruas desabitadas, com a presença da vigorosa lua, e de alguns bêbados pela estrada. Caminho entre jardins pomposos, e pela desvairada noite que me acalenta durante breves minutos.
Alto ali do sétimo andar, via uma luz desperdiçada de manhã. Uma ninfeta andava apenas de calçinha pelos corredores escuros de um apartamento esquecido. Interrompi meu compassivo trajeto, e procurei os olhos daquela guria no meio da tenebrosa madrugada fria. Nada achei. Daí então, continuei minha andança por dúbios caminhos, imaginando novos cenários pela frente. Deparei-me com pétalas que pairavam pelo céu, e apontava um nascer do sol deslumbrante. As ruas despidas começam a ficar pequenas, e mais um dia surge ao acaso, e minha rotina estava a me esperar por mais um dia de trabalho.
Logo intuo uma demasiada ânsia ao ver a ruiva dos meus devaneios. Ela vem descendo o jardim das magnólias, pestanejando seus vistosos cabelos, cobrindo parte de seu pálido semblante juvenil. As palavras sussurravam em meus ouvidos, querendo por tudo ser marcada num papel sombreado de medo e angústia. Não me rendi, pois aquele sentimento esquizofrênico não merecia ser lembrando em meu diário esquecido. As mãos trêmulas mal conseguiam escrever as solicitações de alguns clientes. A voz ecoa com o timbre de insegurança, e com a audácia de um operador de telemarketing, que era amparado pelo aconchego dos muros que cerceavam seu corpo.
Os braços, naquele dia foram desamparados. Os olhares ficaram no vácuo. Os lábios permaneceram esbranquiçados pela secura do beijo que não aconteceu. Minhas rosas murcharam, e as poesias retiraram seu encanto do pergaminho. A única coisa perceptível naquele instante era meu semblante moribundo, que entregava minha decepção platônica. Ansiava por um cigarro, acompanhado de uma xícara de café açucarado. Só assim desvelaria a missiva do meu subconsciente. No entanto, optei por seguir minha maldita intuição, que me levaria mais uma vez ao transtorno.
Continuei minha manhã cerceada por dúvidas, e por lembranças que não tinham acontecido em minha vida real. Decidi então adentrar no meu mundo ilusório, pois somente assim, teria as palavras em minhas mãos para serem escritas da maneira apropriada. O sabor do êxtase percorria em minhas turvas veias, contendo meus anseios e desvendando os próximos passos daquela vida solitária.
“Só há uma chance para viver”. Era o que eu sempre ouvia das pessoas comuns. Por isso não quis desperdiçar meu quotidiano por amores banais. Conseqüentemente, o medo se esvai por não saber viver, e por residir emaranhado na dor sem hesitar. Olho para céu e vejo um vazio no meu estômago. A gastrite almeja cigarros e cafeína. Mas a única coisa que me preencheu, foi à poesia azucrinante e audaciosa. Passei uma manhã de tormentos. Não queria me render, mas acabei me entregando a aquelas palavras inusitada, sobre o nascer de um sol impiedoso, e perspicaz.
Quando acordei daquele delírio febril, percebi que era tarde demais, pois minha suposta amada já tinha embarcado no ônibus da saudade. Sendo assim, decidi antecipar minha carga horária, e segui desbravando a Rua 90. Meu objetivo naquele momento era de estacionar-me em uma praça mais próxima possível. Ancorei-me então na Praça do Cruzeiro, e comecei a retirar um cigarro do meu velho maço. Acionei a combustão do meu fiel isqueiro, e comecei a fumar todos aqueles acontecimentos surreais.
Os dias correm e somem, e com toda certeza não vão voltar. Por isso, sempre acreditei que um dia saberia a verdade da minha vida. Sei que minha vida foi escrita em algum livro desconhecido, e que um dia teria todas as perguntas para minhas dúbias respostas.
Nesse momento estou sentado no meio-fio de uma rua solitária, acompanhado pela ilustríssima presença de um velho barreiro, e de um punhado de cigarros amassados pelo bolso do jeans. Lembrei-me esporadicamente do meu primeiro amor de primavera. Era um amor inocente, e uma paixão passageira de festa junina. O sentimento misturava-se com a insegurança e com o gosto amargo do desprezo. Mas para todos os efeitos, me decompunha em cartas românticas do século XVIII. Fui incompreendido por certas pessoas, e admirado por tantas outras. Desde cedo tive a companhia inseparável das palavras. Era meu alento, e a minha perdição.
Sempre desejei veementemente ter nascido em séculos passados. Neste século da aparência, em qual vivemos, as pessoas tornaram-se insensatas, medíocres e obscenas. Queria mesmo era sentir o gosto do linguajar senil, e residir emaranhado nos espinhos de uma rosa ingrata e fugaz. No entanto, venho gradativamente me habituando ao meu mundo ilusório. Um mundo que perpassa descendências. E que é acostumado à serena solidão de um poeta de araque.
Para os não me conhecem, sou jornalista por profissão, e escritor por paixão. Nasci através de uma experiência do acaso, e desde então, professo pelos caminhos tortos de uma vida bucólica. O destino, um senhor de bengala, ordenou aos meus pais que eu deveria chamar “Pablo”. Esse esporádico nome surgiu através das escrituras de um livro sujo e desconhecido. Quando criança, tinha sempre em meu bolso um sonho para contar. Estava à frente do tempo e do vento. Sempre estive desacompanhado. Meus pais saiam antes da alvorada, e quando voltavam me encontrava apegado ao sono, acompanhado por meu leal travesseiro.
Nunca descobri a importância de viver. Mas sempre soube que esse mundo se decompunha aos olhos da ambição, e do consumismo exacerbado. Senti de perto os desníveis sociais, a pobreza e a ausência de uma educação digna. Com isso, me aliei à luta do comunismo, para criação de um mundo melhor, e para que todos nós possamos ter a decência de uma vida de operário. A angústia sempre teve vez em minha melancólica vida. Sempre estive atrelado ao inconformismo, e ao sentimentalismo que permeia na trilha do meu destino. Se hoje falo de amor, é por que há tempos vivo na complexidade do medo e da amargura.
Quando me despertei daquele profundo pensamento longínquo, o relógio mudo apontava os deslumbramentos às uma e quarenta da madrugada. Levantei daquele meio-fio ingrato e desconfortável, sacudi a poeira do meu surrado jeans, e segui o caminho do lastimoso vento. As luzes das vitrines deletérias mostravam que meus passos estavam na avenida central. E as nuvens que pairavam no céu furibundo, teimavam em derramar sua chuva sobre os passos de um poeta esquecido e sisudo, para esconder as lágrimas que manchavam seu rosto padecido. A idade já não fazia parte do meu corpo, circunstancialmente envelhecia somente a alma e os pensamentos pecaminosos. Vou levando assim, entre a velhice e a juventude, mais perto da fragilizada velhice.
Meu espírito revolve todos os meus cuidados e recorda meus terríveis medos de inverno. Vivo assim, entre cravos e espinhos. Entre o silêncio e as palavras ancoradas num papel amarelado pelo tempo penitenciado. No entanto, de forma catastrófica sigo desvelando minhas ínfimas poesias, ludibriando a estupidez do meu destino infeliz, para não voltar aos devaneios decorrentes do ano de 2006. Pois foi quando descobri o amor e a perdição de viver emaranhado nos vistosos lábios de algodão. Foi quando descobri a loucura da paixão, e a dor da ilusão. Fiquei estarrecido e apócrifo. A única coisa viável a se fazer naquele momento era me render ao inconformismo, e travar guerras dentro do meu dilacerado coração. Tinha que me recompor, e transformar aquela situação em uma infindável lira poética.
Os anos decorrentes passaram como um piscar de pálpebras. Amores platônicos surgiram em meu jardim, como pétalas lançadas aos ventos em prerrogativa da felicidade que não chegava à minha janela. Nunca imaginei que minhas turvas rosas iriam murchar, mas quando a realidade chega, ela não pede licença para entrar, simplesmente invade nosso corpo, e leva-nos para a tristeza morosa. Foi assim que eu não sobrevivi ao temporal.
Enquanto o frio assume meu corpo, eu não aprendi a tradução da saudade. Não aprendi a me render sem sequer tentar lutar. Pois quando criança meu pai sempre cochichava em meus ouvidos, dizendo que “nunca se vence uma guerra lutando sozinho”. Que caia o inimigo então. Ou melhor, que o amor exilado em meu peito seja esquartejado pela vontade de viver solitário. Já não suporto a inconstância desse nevoeiro, isso me provoca náuseas, e não posso ficar nessa situação por mais tempo, pois nosso plano era de ficarmos bem.
Quando o sol ainda não havia cessado o seu brilho, quando a noite engolia aos poucos o avermelhado do crepúsculo, você veio se sentar ao meu lado feito um mavioso sabiá receado. Esmiuçou meu semblante senil com a delicadeza de suas mãos. Inquiriu meus vistosos lábios com a voracidade de um desejo sem fim. Mas , quando absorveu minha ultima gota de seiva, jogou-me na madruga feito uma rosa murcha sem serventia para os seus dias subseqüentes.
Nívea, era o nome da minha primeira rosa azul-turquesa. Eram os vistosos lábios de uma guria diáfana, que sempre usava do maledicente para se esconder atrás do voraz mundo contemporâneo. Esse nome era a designação dos raios infindos do crepúsculo, era a primeira estrela do dia, e a vigorosa lua do martírio.
Fecho os olhos na esperança de te ver. Transporto-me para sua estrada para caminhar ao seu lado, mas sua fragilidade não deixa você me sentir tão perto. Elevo meus pensamentos até aos seus sonhos, no entanto, seu orgulho fútil faz com que eu vá embora para o recanto das magnólias esquecidas. Escuto um timbre rouquenho pronunciando a palavra “Anjo”, era assim que ela me chamada.

Continua...

Pablo Silva